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Notas de um velho safado
Antissocial,
misógino, bêbado, tarado: morto há vinte anos, o escritor Charles Bukowski
transcende os rótulos que lhe foram atribuídos
TAGS: Buk, Charles Bukowski, Fernando Koproski, Ivone
Fs, L&PM, Marcelo Ariel, Mário Bortolotto, Mulheres,Pulp, Reinaldo Moraes
Patrícia Homsi
Charles Bukowski
“Sempre fui de perna. Foi a primeira coisa que vi
quando nasci. Mas então eu tentava sair. Desde então, tenho me virado no
sentido contrário, e com um azar dos diabos”, diz o detetive Belane nas
primeiras páginas de Pulp (L&PM, 2009), o último livro de
Charles Bukowski, publicado pouco antes de sua morte, em 9 de março de 1994, em
decorrência de leucemia. Na ocasião, Belane estava distraído com as pernas de
Dona Morte, sentada em seu escritório à procura de Céline – sim,
Louis-Ferdinand Céline –, escritor que supostamente havia fugido dela. Dona
Morte cruzava as pernas, hipnotizando Belane. Assim como o detetive, Charles
Bukowski, nascido na Alemanha em 16 de agosto de 1920 e criado num subúrbio de
Los Angeles, parecia distrair-se facilmente diante de um par de pernas
femininas.
A fama de velho safado, bêbado e masturbador
compulsivo, rendeu a Bukowski críticas e acusações de misoginia durante toda a
vida. Numa entrevista em 1988, porém, disse irritado: “Eu simplesmente não
transo e pulo de cama em cama. Seria bom poder dizer isso e fingir que eu sou
durão, mas não sou”. O autor considerava o tratamento dado às suas personagens
masculinas muito pior que às femininas. Para ele, o amor era um “cão dos
diabos”, como diz um de seus versos. A aflição acompanhava amor e sexo,
prendendo-o numa paixão incontrolável, irracional. Como explica Marcelo Ariel,
coordenador do projeto Bukowski 20, idealizado por Ivone Fs em homenagem aos 20
anos sem o autor, “na obra de Bukowski, o amor e o sexo são o triunfo do
fracasso”.
Para o velho Buk, era a alma marginal que
importava; A essência errante e humana que não via presente em personagens como
Mickey Mouse, por exemplo. William Packard, que editou alguns de seus textos,
chegou a dizer que o objetivo de Bukowski era uma “desdisneyficação” de seus
leitores, guiada por amostras de alma e verdade, coisas que Mickey Mouse não
ensinava.
Por explorar o erotismo e as fantasias em torno de
mulheres, bem como pela exposição da realidade americana contrária ao american
dream, Bukowski foi, por muitos anos, subestimado pela crítica
norte-americana. Como explica Fernando Koproski, poeta e tradutor de uma
antologia de poemas do autor, os críticos da época eram “mais afeitos ao
preciosismo”, em detrimento da poética livre e espontânea de Bukowski.
Charles Bukowski Cru
“Bukowski me chamou a atenção por falar diretamente
sobre uma realidade que eu via descortinada exatamente como nos seus textos,
isto é, sem firulas e sem frescuras, sem ornamentação desnecessária,
artificialismos, psicologismos babacas ou com o ranço de uma linguagem velha e
estagnada”, lembra Koproski. Reinaldo Moraes, escritor e tradutor deMulheres (L&PM,
2011), diz que o interessante na obra do velho Buk é precisamente a
demonstração real e suburbana dos fatos que o cercavam, sem que fosse
necessário embelezar a suja sarjeta: “Chutar o rabo do bom gosto. Extrair
poesia do fundo do poço. Essas merdas”.
Para os tradutores, o ambiente retratado por
Bukowski guarda na linguagem desafios para a adaptação ao português. Segundo
Fernando Koproski, o objetivo de seu trabalho é “escrever um texto em português
que contenha similar coloquialidade, simplicidade, lírica e pegada do texto em
inglês, sem ser ‘tosco’”. Reinaldo Moraes também se inspira no estilo
“coloquial miúdo, rápido, com pegada de boxer do velho Buk”, e confessa a
dificuldade na tradução de gírias: “Quase me enforquei tentando traduzir o
sistema de apostas no turfe americano da época, com as gírias dos turfistas
pés-de-chinelo, por exemplo”.
Bukowski sofreu com ataques violentos do pai desde
a infância, exclusão entre os jovens na adolescência e uma crise de acne que
lhe deformava o rosto, tudo isso relatado em Misto quente (L&PM,
2005). Sua literatura foi formada nesse cenário imundo da falência do sonho
americano e dos subempregos, somado ao ambiente de uma Los Angeles crua e
inevitavelmente depressiva. As influências deram origem a relatos da rotina do
autor, cujos temas principais, como relembra Ivone Fs, poeta e organizadora do
Bukowski 20, eram a “rotina de bebedeiras e ressacas intermináveis, suas
histórias amorosas, rodeado de prostitutas, sua paixão pelas corridas de
cavalo, sua vida solitária e completamente desregrada”.
Como afirma Mário Bortolotto, dramaturgo, ator e
diretor responsável pela montagem teatral de Mulheres, a vida do
velho Buk era a “matéria prima” de seu trabalho. A maioria das obras envolve
elementos biográficos e ficção juntos, principalmente naquelas em que Bukowski
utiliza Henry Chinaski, seu alter ego, como personagem. Reinaldo Moraes explica
que, “em geral, na boa literatura, essas instâncias [real e ficcional] se
misturam a ponto de a própria versão sobrepujar o fato”.
A turma de Buk
A turma de Buk
Devido ao uso de relatos autobiográficos sobre a
rotina suburbana preenchida com cerveja, Charles Bukowski costumava ser
classificado (palavra insuportável para ele) como beat, ao lado de
William Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouack. “Tanto nele quanto em alguns
beats, como [Carl] Solomon e Kerouack, o cotidiano é retratado como parte de
uma patologia com alguns surtos de beleza dentro dela”, diz Marcelo Ariel. Mas
o fato é que Buk “era um animal antissocial, não fazia parte de grupos”,
destaca Bortolotto.
Reinaldo Moraes lembra um relato do autor sobre a
vez em que encontrou Burroughs numa feira literária e não sentiu vontade de ir
falar com ele (“Aliás, ele detestava feiras literárias. ‘Muita mosca em cima da
mesma merda’, ele dizia”). “Os beats da estirpe de Kerouack,
Ginsberg e Burroughs eram classe-média universitária. Buk pegava no pesado. Foi
funcionário do correio durante anos. Lutou boxe, foi carregador. Outra
enfermaria sócio-cultural. Ele sentia a diferença com a devida dose de
ressentimento.”
Após o sucesso como escritor, já com cerca de 50
anos, as companhias mais comuns de Buk eram mulheres. Como explica Ivone Fs,
“imagine um homem com essa idade tendo a chance de vivenciar todas as suas
fantasias e sonhos de adolescente. Elas agora estavam a sua procura. Elas
querem conhecer o grande escritor”.
Mesmo com a frequência feminina em sua cama,
Bukowski ainda não se adaptara a angustiantes relacionamentos amorosos. “Às
vezes, uma cerveja é melhor que amor e sexo – diz o personagem Hank, de Mulheres,
em certas horas sombrias”, reflete Reinaldo Moraes. Para Mário Bortolotto, que
interpretou Henry Chinaski, “como Domingos de Oliveira ou como o Detetive
Mandrake, do Rubem Fonseca, ele amava todas as mulheres do mundo”. De acordo
com o velho Buk: “O amor se esgota, pensei ao caminhar de volta ao banheiro,
mais rápido do que um jato de esperma”.
Bukowski 20 – Especial II
Onde: Cemitério dos Automóveis – Rua Frei Caneca, 384
Quando: 13/03, a partir das 20h
Quanto: R$ 5,00
Onde: Cemitério dos Automóveis – Rua Frei Caneca, 384
Quando: 13/03, a partir das 20h
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