segunda-feira, 27 de junho de 2016

Não posso andar que já começo a pensar. Isso sempre acontecia comigo quando andava pela XV. Passava meia-hora andando de casa até a universidade e não via ninguém. Muitas vezes um conhecido dizia depois que havia me cumprimentado, mas eu nem respondia. O pior é que era verdade, sempre fui distraído. Me distraía a cada momento que passava no calçadão. Às vezes porque estava simplesmente olhando uma cena, às vezes porque estava escrevendo de cabeça um poema, mas nem sempre eu pensava em poesia, nem sempre eu escrevia. Muitas vezes era só a poeira girando dentro da minha cabeça, provocando algum pensamento afogado na inércia daquele mar de neurônios condenados à neura da repetição... Como eu disse, muitas vezes era só a poeira girando dentro da minha cabeça, se levantando, pairando e depois lentamente se assentando novamente.
Mas se nessa hora em que as micropartículas de pó levitassem, de repente abrisse uma réstia de luz na minha cabeça, e uma lasca de sol entrasse sem ser convidada, eu já sabia: era poesia. Por um instante, eu podia até pensar que era uma epifania, tipo um acúmulo de nuvens douradas guardadas no fundo do crânio, mas no íntimo eu sabia que isso jamais existiria, ou se existisse, francamente não resistiria. Porque no fundo da cabeça era simplesmente poeira, dourada ou não, mas ainda poeira e talvez o início de uma poesia.
De qualquer forma, sempre que isso acontecia entrava num impasse: ou escrevia o que me vinha ou ignorava a magia. Mas você já fez isso algum dia, você já ignorou a poesia?
O dia em que ignorei a poesia: 21 de maio.
Sim, ela estava comigo naquele dia. Seis da tarde. Ela tinha acabado de sair da aula de dança flamenca. Suas pernas brancas mal se continham dentro da meia-calça roxa. Os sapatinhos de boneca realçavam ainda mais a delicadeza dos pés. A sainha preta ficava agitada diante de minha presença e se rebelava ao vento, inaugurando belezas imprevistas na linha de cintura que a suavidade de seus gestos não compreendia, só intuía entre os seus passos de quase dança e os canteiros improvisados de pétalas de ipês amarelos caídas ao chão.
Maria tinha 26, um pai alcóolatra, uma mãe doente, um irmão carente e uma série de tios e tias ausentes. Ela cursava a Belas Artes, queria ser pianista, tocava desde os quatro anos. A dança era mais uma transpiração do que uma ocupação. Era como a poesia pra mim: um suor da alma. Era algo tão natural e certo e irremediável que parecia não exigir dela nenhuma espécie de esforço para acontecer. Ela dançava não porque ambicionava isso, mas porque a dança era simplesmente sua moradia nas coisas que ela sabia e seu caminho para tudo que ela desconhecia. Sim, quando vinha na minha direção naquele fim de tarde, ela dançava pra mim belezas imprescindíveis de jasmim.
Mas a caminhonete importada avançou o sinal naquele instante. Poderia ter sido um minuto depois ou um minuto antes. Mas não. Tinha que ser naquela hora em que ela se virou pra sorrir pra mim, anunciando com os olhos verdes o seu abraço de jasmim. A caminhonete prensou seu corpo frágil violentamente contra o poste, esmagando pétalas de ipês, e roubando de mim para sempre aquele abraço delicado.
Era seis da tarde quando meu mundo caiu. Sem boleros de Maysa, sem falsa poesia, sem chance de chegar à enfermaria.

Agora vocês já sabem porque estou aqui, porque peguei um ônibus em São José dos Pinhais há quarenta minutos atrás, porque passei pelo Guadalupe mais uma vez, porque não fui direto pra reitoria, porque andei vinte quadras no calçadão da XV pra comprar aquela pistola na Cruz Machado. Por causa disso: um poeta deve morrer, mas antes um poeta deve matar. Sim, um poeta deve matar.

Fernando Koproski
do romance CRÔNICA DE UM AMOR MORTO

http://www.livrariascuritiba.com.br/cronica-de-um-amor-morto-aut-paranaense-lv395564/p
COMO É MAIS FÁCIL TE AMAR

Eu tenho ódio do amor
O amor arrancou a minha insígnia
O amor ainda insiste que eu o siga
O amor deu com os dentes na língua

Eu tenho ódio do amor
O amor me fez desapontar aquela menina
O amor deixou ela toda pontiaguda
O amor arruinou a minha ruína

Eu tenho ódio do amor
O amor deixou poetas com a pele dura
O amor me rebaixou de posto
O amor dava as caras, agora é só um rosto

Eu tenho ódio do amor
O amor me arruma cada uma
O amor é a minha runa, a minha ruína,
A minha mulher de rua e a minha menina

Eu tenho ódio do amor
Que me faz escrever poemas pra você
Mas não me dá coragem de dizer:
O quanto eu odiei te odiar,

E como é mais fácil te amar

Fernando Koproski
no livro “A TEORIA DO ROMANCE NA PRÁTICA” (série de ficção A complicada beleza)
http://www.livrariascuritiba.com.br/teoria-do-romance-na-pratica-a-aut-paranaense-lv395565/p 
NARCISO PARA MATAR (série de ficção A complicada beleza)
http://www.livrariascuritiba.com.br/narciso-para-matar-aut-paranaense-lv395563/p
CRÔNICA DE UM AMOR MORTO (série de ficção A complicada beleza)
http://www.livrariascuritiba.com.br/cronica-de-um-amor-morto-aut-paranaense-lv395564/p
MALDITO DEUS ARRANCANDO ESSES POEMAS DE MINHA CABEÇA (antologia poética de CHARLES BUKOWSKI)
http://www.livrariascuritiba.com.br/maldito-deus-arrancando-esses-poemas-de-minha-cabeca-aut-paranaense-lv386681/p
AMOR É TUDO QUE NÓS DISSEMOS QUE NÃO ERA (antologia poética de CHARLES BUKOWSKI)
http://www.livrariascuritiba.com.br/amor-e-tudo-que-nos-dissemos-que-nao-era-autores-lv314864/p
ESSA LOUCURA ROUBADA QUE NÃO DESEJO A NINGUÉM A NÃO SER A MIM MESMO AMÉM (antologia poética de CHARLES BUKOWSKI)
http://www.livrariascuritiba.com.br/essa-loucura-roubada-que-nao-desejo-a-ninguem-a-nao-ser-a-mim-mesmo-amem-7-letras-lv314866/p
ATRÁS DAS LINHAS INIMIGAS DE MEU AMOR” (antologia poética de LEONARD COHEN)
http://www.livrariascuritiba.com.br/atras-das-linhas-inimigas-de-meu-amor-aut-parana-lv220048/p
Outros livros do Fernando Koproski são:
RETRATO DO ARTISTA QUANDO PRIMAVERA
http://www.livrariascuritiba.com.br/retrato-do-artista-quando-primavera-7-letras-lv341627/p
RETRATO DO AMOR QUANDO VERÃO, OUTONO E INVERNO
http://www.livrariascuritiba.com.br/retrato-do-amor-quando-verao-outono-e-inverno-7-letras-lv341626/p
NUNCA SEREMOS TÃO FELIZES COMO AGORA
http://www.livrariascuritiba.com.br/nunca-seremos-tao-felizes-como-agora-7-letras-lv244140/p
TUDO QUE NÃO SEI SOBRE O AMOR
http://www.livrariascuritiba.com.br/tudo-que-nao-sei-sobre-o-amor-aut-paranaense-lv181720/p

e aqui, há 4 CDs meus disponíveis para ouvir e baixar:
https://fernandokoproski.bandcamp.com/

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