quinta-feira, 9 de junho de 2016

Como vocês notaram, essa foi a última vez que eu morri. Mas nem de longe essa foi a primeira vez. Já morri várias vezes. E nem sempre foi uma morte útil como esta última.
    A primeira vez que eu morri: era março de 1991. Tinha acabado de entrar na universidade. Tinha dezoito, as mãos macias, olhos de terra molhada e os cabelos também castanhos, cabelos curtos mal disfarçando a ingenuidade da terra molhada, tanto apta a ser perfumada depois da chuva, quanto passível de cair na lama facilmente.
    Era engenharia o que meus pais queriam que eu fizesse e era engenharia o que eu estava fazendo. Sempre tive inclinação pra matemática e portanto toda aquela infinidade de cálculos diferencial e integral me fascinava, dava a prova real de que eu era filho de meu pai, também engenheiro e formado nessa mesma faculdade.
    Mas as coisas para meu pai tinham sido diferentes. A infância pobre naquela cidadezinha de terra vermelha lá do norte do Paraná não só deixou marcas e calos em suas mãos, mas também encardia de terra vermelha sua memória cada vez que falava do passado. A terra vermelha pra quem não sabe, não só encarde tudo que você veste, seja branco ou não. A terra vermelha gruda na roupa, gruda na pele como uma ferida aberta que nunca forma casca. Ou se forma, logo nos lembra da verdade mais uma vez quando a ferida se corta e rasga novamente, revelando o vermelho da carne, vermelho da terra que a gente tem debaixo da pele.
    E é nessa terra vermelha que nós plantamos e cultivamos nossos mortos. Meu vô foi o primeiro a ser enterrado a sete palmos abaixo da pele, depois foi minha avó. E depois a minha outra avó, e por fim meu outro vô. Sinto os quatro dentro de mim. Sei que tenho um pouco de cada um deles e um tanto de terra vermelha correndo em minhas veias.
    Acho que é isso que me faz ser impulsivo, não aguentar ouvir muita besteira. A cada vez que encontro um empenho, uma pessoa que bate de frente ou qualquer espécie de enrosco, não consigo disfarçar nem dissimular. Imprudência ou tendência à inadequação, só sei que acabo abrindo a boca, e mostrando à flor da pele o vermelho de que sou feito.
    Mas tudo isso caiu por terra quando conheci Scarlett. Scarlett foi o meu primeiro amor e a primeira vez que eu morri.

Fernando Koproski
do romance CRÔNICA DE UM AMOR MORTO
http://www.livrariascuritiba.com.br/cronica-de-um-amor-morto-aut-paranaense-lv395564/p
– Penso em escrever um romance com essa dedicatória: “para todas as musas que nunca souberam que foram musas”.
– Mas você tem uma história pra escrever?
– Não. Acho que não. Nem sei se sou romancista. Provavelmente, não. Mas quero escrever um romance. Acho que foi assim com outros escritores também. Acho que eles nunca pensaram em escrever um romance, simplesmente escreveram. Assim mesmo, foram simplesmente jogando na página uma palavra depois da outra, como a colher de açúcar nesse café, uma depois da outra.
– Úúúúii, muito açucarado isso! Você está sentimental hoje, não? Só falta dizer que vai escrever isso sem planejar, sem pensar numa história, sem fazer um plano da obra. Apenas escrever e ver no que vai dar. Mas até quando? Até a hora que não der mais?
– É, mais ou menos assim, agora vou escrever só por escrever. Não penso mais em publicar mais nada. Só quero escrever sem pensar nas ideias do editor, nas tendências estilísticas da “nova” literatura apontadas na última antologia da geração x ou y, ou no que os críticos estão ruminando, ou no que os suplementos literários estão diluindo, muito menos nos expoentes da “nova” literatura brasileira que estão sendo premiados e despontando nos concursos literários. Nada disso. Que se foda tudo isso. Isso tudo nunca teve, e nunca vai ter nada a ver com a literatura. Só quero escrever, Maria. Botar açúcar na minha amargura até a vida azedar tudo de vez, até a hora que não der mais.
– ...

Fernando Koproski
no livro NARCISO PARA MATAR
http://www.livrariascuritiba.com.br/narciso-para-matar-aut-paranaense-lv395563/p

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