Como
vocês notaram, essa foi a última vez que eu morri. Mas nem de longe essa foi a
primeira vez. Já morri várias vezes. E nem sempre foi uma morte útil como esta
última.
A primeira vez que eu morri: era março de
1991. Tinha acabado de entrar na universidade. Tinha dezoito, as mãos macias,
olhos de terra molhada e os cabelos também castanhos, cabelos curtos mal disfarçando
a ingenuidade da terra molhada, tanto apta a ser perfumada depois da chuva,
quanto passível de cair na lama facilmente.
Era engenharia o que meus pais queriam que
eu fizesse e era engenharia o que eu estava fazendo. Sempre tive inclinação pra
matemática e portanto toda aquela infinidade de cálculos diferencial e integral
me fascinava, dava a prova real de que eu era filho de meu pai, também
engenheiro e formado nessa mesma faculdade.
Mas as coisas para meu pai tinham sido
diferentes. A infância pobre naquela cidadezinha de terra vermelha lá do norte
do Paraná não só deixou marcas e calos em suas mãos, mas também encardia de
terra vermelha sua memória cada vez que falava do passado. A terra vermelha pra
quem não sabe, não só encarde tudo que você veste, seja branco ou não. A terra
vermelha gruda na roupa, gruda na pele como uma ferida aberta que nunca forma
casca. Ou se forma, logo nos lembra da verdade mais uma vez quando a ferida se corta
e rasga novamente, revelando o vermelho da carne, vermelho da terra que a gente
tem debaixo da pele.
E é nessa terra vermelha que nós plantamos
e cultivamos nossos mortos. Meu vô foi o primeiro a ser enterrado a sete palmos
abaixo da pele, depois foi minha avó. E depois a minha outra avó, e por fim meu
outro vô. Sinto os quatro dentro de mim. Sei que tenho um pouco de cada um
deles e um tanto de terra vermelha correndo em minhas veias.
Acho que é isso que me faz ser impulsivo,
não aguentar ouvir muita besteira. A cada vez que encontro um empenho, uma
pessoa que bate de frente ou qualquer espécie de enrosco, não consigo disfarçar
nem dissimular. Imprudência ou tendência à inadequação, só sei que acabo
abrindo a boca, e mostrando à flor da pele o vermelho de que sou feito.
Mas tudo isso caiu por terra quando conheci
Scarlett. Scarlett foi o meu primeiro amor e a primeira vez que eu morri.
Fernando Koproski
do romance CRÔNICA DE UM AMOR MORTO
do romance CRÔNICA DE UM AMOR MORTO
http://www.livrariascuritiba.com.br/cronica-de-um-amor-morto-aut-paranaense-lv395564/p
–
Penso em escrever um romance com essa dedicatória: “para todas as musas que
nunca souberam que foram musas”.
–
Mas você tem uma história pra escrever?
–
Não. Acho que não. Nem sei se sou romancista. Provavelmente, não. Mas quero
escrever um romance. Acho que foi assim com outros escritores também. Acho que
eles nunca pensaram em escrever um romance, simplesmente escreveram. Assim
mesmo, foram simplesmente jogando na página uma palavra depois da outra, como a
colher de açúcar nesse café, uma depois da outra.
–
Úúúúii, muito açucarado isso! Você está sentimental hoje, não? Só falta dizer
que vai escrever isso sem planejar, sem pensar numa história, sem fazer um
plano da obra. Apenas escrever e ver no que vai dar. Mas até quando? Até a hora
que não der mais?
–
É, mais ou menos assim, agora vou escrever só por escrever. Não penso mais em
publicar mais nada. Só quero escrever sem pensar nas ideias do editor, nas
tendências estilísticas da “nova” literatura apontadas na última antologia da
geração x ou y, ou no que os críticos estão ruminando, ou no que os suplementos
literários estão diluindo, muito menos nos expoentes da “nova” literatura
brasileira que estão sendo premiados e despontando nos concursos literários.
Nada disso. Que se foda tudo isso. Isso tudo nunca teve, e nunca vai ter nada a
ver com a literatura. Só quero escrever, Maria. Botar açúcar na minha amargura
até a vida azedar tudo de vez, até a hora que não der mais.
–
...
Fernando
Koproski
no
livro NARCISO PARA MATAR
http://www.livrariascuritiba.com.br/narciso-para-matar-aut-paranaense-lv395563/p
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