quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

10. Esperando pelo milagre

Quando passei para o segundo ano da faculdade, resolvi ser idiota mais uma vez. Não por cometer a mesma idiotice duas vezes mas sim por ser idiota novamente. Isso são duas coisas bem diferentes, mas mesmo um idiota como eu sabe diferenciá-las.
O motivo de eu ser um idiota? A poesia, é claro. Mais uma vez a poesia... Naquela noite eu seria um idiota mais uma vez por estar lançando dois novos livros de poemas. O primeiro, como diziam os jornalistas, resumia meu “percurso poético” nos últimos quatro anos. Já o outro, continha fragmentos de um longo texto em prosa, aos quais os críticos brilhantemente decidiram por chamar de ‘poemas em prosa’. Na verdade, este era o meu melhor texto até o momento. Tinha escrito ele em 26 noites ininterruptas durante o mês de janeiro, ouvindo muito Bring on the dancing horses do Echo and the bunnymen e quase furando o Lp do Leo Cohen que tinha Waiting for the miracle.
E tanto esperei que o milagre veio, não como eu esperava mas na forma de uma morena de olhos negros. Olhos feitos de noites sempre foram os que mais me assustavam, pois na escuridão sem uma sequer lasca de luz de olhos como aqueles eu sabia que seria aprisionado. Não bastava Lenora ter os olhos negros e de relance, por cima da taça de vinho, olhar fixo pra luz de meus olhos, não bastava ela ter testemunhado de longe minha luz naquela noite fria de julho, ela queria mais, ela tinha que ter aquela luz só para ela, arrancar o meu brilho de ponta de faca e aresta de estrela nem que fosse à força.
Foi assim que ela começou, primeiro com uma conversa bobinha, beirando o óbvio recorrente de mais uma noite de lançamento: “Que bacana que você escreve... Sabe que eu também? Desde pequena eu escrevo...” E depois me atingindo com eficácia, ao dividir comigo a mesma borda da taça de vinho marcada com seu batom, enquanto disse: “E então, gostou do meu gosto?”
Autografei uns cinquenta livros naquela noite, revi velhos amigos e principalmente não reconheci a maioria dos que estavam presentes. Embora fosse um lançamento só para amigos e familiares, começaram a entrar uma série de desconhecidos no coquetel. É claro que o atrativo para tantas mentes ávidas não era a minha poesia, mas sim as oitenta garrafas de cabernet sauvignon que o garçon distribuía sem parcimônia pelo salão.
Vinho, poesia e aqueles olhos negros de Lenora: só podia dar merda. E deu. Depois do lançamento, fomos pra casa de uma amiga dela e entre uma tequila, dois conhaques e mais vinho, arrastei ela pro banheiro. Enquanto os convidados aumentavam o som e a síndica interfonava ordenando inutilmente pra baixar o volume, ela começou mordendo o canto da minha boca. Lasca a lasca líquida que ela roubava de meus lábios, o som quente de sua pele me atritava, me suavizava e me atritava com sua saliva novamente. Queria um beijo dela por inteiro, mas isso ela não me dava. Só mordia minha boca, fazendo eu derramar vinho na meia-taça do seu sutiã. Ela só mordia cada vez mais forte minha boca, sorvendo vinho e conhaque da mucosa de meus lábios e abrindo pétalas de licor de cereja entre meus dedos que agora nadavam devagar em seu púbis com força e suavidade. Nem deu tempo de tirar a saia dela. De pé mesmo, rasguei a meia-calça vermelha e afundei meus dedos, dois dedos, depois três dedos dentro daquela pequena piscina quente e apertada de licor de cereja que era a sua buceta.
E ali, sem querer, bati na torneira do chuveiro que abriu molhando seus cabelos de leve. Foi quando olhei pra ela e vi que estava perdido. Ela tinha ficado ainda mais bonita com os cabelos molhados... Não deu outra, abri o chuveiro com tudo. E naquela noite fria, o chuveiro quente molhou totalmente as nossas roupas. Segurei ela contra a porta do box e meti com força, fixando ela no meu centro. Enquanto a água aquecia e se esquecia entre nossos lábios, ela gritou em silêncio no meu ouvido, mordendo em meus lábios o orgasmo mais lindo que ela teria, um puro livro de poemas que eu jamais tinha visto. Minhas pernas cederam junto com as pernas dela e nós caímos no chão do banheiro. Ela se ajoelhou sobre mim, as suas coxas em cima do meu peito, e enquanto a água ainda nos conduzia lentamente pela correnteza quente do sol líquido da madrugada que nos liquefazia, nos desmanchava e nos preenchia de prazer, ela disse: “Poe, seu louco...”
Eram duas da manhã e a festa estava no auge. Trinta pessoas num apartamento minúsculo cantando Blur. Song 2, é claro.
Lenora não pediu e nem quis me dar seu telefone. Ela foi embora depois de emprestar umas roupas da dona do apartamento, e eu fiquei no banheiro até às quatro e meia, tentando inutilmente secar, com o secador de cabelo da anfitriã, as minhas roupas.
Com três livros publicados, a roupa encharcada, o gosto de um beijo machucando de leve a boca, e um tinto seco pela metade no meio de toda aquela inundação que foram as coxas de Lenora, eu pensei: “Poesia, eu fui feito pra você, ainda que você não tenha sido feita pra mim!”

Fernando Koproski
do romance CRÔNICA DE UM AMOR MORTO (livro 2 da série “A complicada beleza”) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/cronica-de-um-amor-morto-aut-paranaense-lv395564/p
A TEORIA DO ROMANCE NA PRÁTICA (livro 3 da série “A complicada beleza”) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/teoria-do-romance-na-pratica-a-aut-paranaense-lv395565/p
NARCISO PARA MATAR (livro 1 da série “A complicada beleza”) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/narciso-para-matar-aut-paranaense-lv395563/p
RÉU CONFESSO

fui viciado 20 anos nessa droga,
a droga da beleza
e isso não só me causou dependência

mas uma série de outros efeitos colaterais
recorrentes tais
como falta de ar,
arritmia,
alergia à objetividade,
distração,
miopia,
falta de atenção,
cinema,
sonoplastia,
livros de poesia
e canção

sim, senhores e senhoras,
respeitáveis membros do júri
e fiéis da igreja da insensibilização,

diante de vocês,
confesso essa inaptidão:

a droga da beleza
me causou problemas neurológicos
irreversíveis

no coração

Fernando Koproski
do livro A TEORIA DO ROMANCE NA PRÁTICA (livro 3 da série “A complicada beleza”) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/teoria-do-romance-na-pratica-a-aut-paranaense-lv395565/p
Cena 84 – O narrador e sua esposa Maria
Quase diálogo no café da manhã

– Penso em escrever um romance com essa dedicatória: “para o jardineiro, o músico, o viajante, o sonhador e o caçador”.
– Mas você tem uma história pra escrever?
– Não. Acho que não. Só sei que tive uns sonhos estranhos essa noite.
– Que tipo de sonho?
– Não sei. Parece que eu era um jardineiro ou eu sonhei que era um jardineiro. Na verdade, sonhei que era um jardineiro sonhando que era um girassol... Sacou?
– Não. Não mesmo.
– Era um sonho louco, ah, tive um monte de sonhos doidos, Maria. No meio de um deles, eu encontrava um livro. Abria ele, mas a maioria das páginas estava arrancada. E as poucas que sobraram ou estavam em branco ou rasuradas.
– De quem era esse livro?
– Acho que era um livro meu que eu nunca escrevi. Sei disso porque no sonho eu lia o título: Narciso para matar. Mas nunca escrevi nada com esse título.

Fernando Koproski
do romance NARCISO PARA MATAR (livro 1 da série “A complicada beleza”)
Apresentando duas cenas do meu romance NARCISO PARA MATAR:

CENA 4 – O ESCRITOR NO ESCRITÓRIO

Penso em criar uma musa para meu poeta
Uma musa só para fazer ele sofrer
Porque poeta que não sofre não é poeta
Assim já dizia meu tio Elvis, um profeta

Elvis dizia de um jeito que ele nunca cantou
“Quem nunca pensou em morrer
Quem nunca quis se matar, morrer de amor
Ah, nunca vai saber o que é viver”

Assim falou Elvis: “se um dia você acordar sem
Problemas, achando que tudo está bem
Pega um martelo, mas o que tiver à mão
E mira bem no meio do teu dedão”

“E arrebenta ele, sem dó nem piedade!”
– Mas por que fazer isso, tio Elvis?
“Porque poeta não foi feito pra ser feliz
Esqueça a felicidade, poesia não é caridade”

Poesia tem mais a ver com verdade
Já a beleza é só uma forma de anestesia,
Algo pra despistar o leitor da realidade
Antes de sentir na veia o baque da poesia
CENA 9 – CRIANDO UMA MUSA

Com essas candidatas à musa
Não há como ter inspiração
O poeta arregaça a manga da blusa
E tira uma carta do coração:

Uma musa para um poeta
Não precisa posar de puta
Com as pernas sempre abertas

Uma musa para um poeta
Não precisa posar de pura
Ou ler suas obras completas

Uma musa para um poeta
Precisa ser mais que a chuva
Lavando lágrimas pontiagudas

Uma musa para um poeta
Precisa ser mais que música
E sonhos para sua armadura

Uma musa para um poeta
Não precisa ler tratados de estética
Ou ter mestrado em cosmética

Uma musa para um poeta
Precisa antes de tudo ser uma mulher
Incomparável, exatamente igual a outra qualquer

Uma musa para um poeta
Precisa ser todo amor e toda a morte
que há dentro de uma mulher

Uma musa para um poeta
Precisa ter, se você tiver muita sorte,
Um antídoto pra essa morte na mesma mulher

Fernando Koproski
do romance NARCISO PARA MATAR (livro 1 da série “A complicada beleza”) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/narciso-para-matar-aut-paranaense-lv395563/p
COMO PUDE DUVIDAR

Parei de procurar por você
Parei de esperar por você
Parei de morrer por você
e comecei a morrer por mim
Envelheci rapidamente
Engordei no rosto
e criei barriga
e esqueci que algum dia te amei
Eu fiquei velho
Não tinha um objetivo, nenhuma missão
Ficava à toa comendo e comprando
roupas cada vez mais largas
e esqueci porque eu odiei
cada longo momento que cabia a mim preencher
Por que você voltou pra mim essa noite?
Não consigo nem levantar da cadeira
As lágrimas escorrem por meu rosto enfim
Estou apaixonado de novo
Eu posso viver assim

poema: Leonard Cohen
tradução: Fernando Koproski
do livro A MIL BEIJOS DE PROFUNDIDADE (2ª antologia poética de LEONARD COHEN) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/mil-beijos-de-profundidade-a-aut-paranaense-lv409219/p



CASA, COMIDA E ROUPA ENCARDIDA

a poesia não me deu casa,
comida, nem roupa encardida
poesia, eu vesti tua camisa

arregacei as mangas dos versos
fiz coisas que de tanto duvidar
até deus acredita

escrevi com sangue, coração
e o que mais estivesse à mão
até com o que meu ódio ojeriza

poesia, eu vesti tua camisa
mas você não me deu casa,
comida, uma passagem pra Ibiza

te dei meu corpo, alma e musa
mas você ainda abusa
e pede mais do que precisa

até hoje não me deu
nem um pastel de vento
mas quer que eu viva de brisa

Fernando Koproski
do livro RETRATO DO ARTISTA QUANDO PRIMAVERA (livro 2 da trilogia “Um poeta deve morrer”) - Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/retrato-do-artista-quando-primavera-7-letras-lv341627/p
RETRATO DO AMOR QUANDO VERÃO, OUTONO E INVERNO (livro 3 da trilogia “Um poeta deve morrer”) - Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/retrato-do-amor-quando-verao-outono-e-inverno-7-letras-lv341626/p
NUNCA SEREMOS TÃO FELIZES COMO AGORA (livro 1 da trilogia “Um poeta deve morrer”) - Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/nunca-seremos-tao-felizes-como-agora-7-letras-lv244140/p

CORAÇÃO E MENTE

inexplicavelmente estamos sós
sós para sempre
e era pra ser
desse jeito,
não era pra ser
jamais de outro jeito –
e quando a luta com a morte
começar
a última coisa que quero ver
são
rostos de pessoas rodeando
sobre mim –
melhor apenas meus velhos amigos,
as minhas próprias muralhas,
que apenas eles estejam lá.

eu fui só mas raramente
solitário.
saciei minha sede
na fonte
que há em mim mesmo
e este foi um bom vinho,
o melhor que já provei,
e essa noite
sentado
olhando pra escuridão
agora finalmente compreendo
a escuridão e a
luz e tudo que há
entre elas.

chega uma paz no coração
e na mente
quando aceitamos o que
há:
ao nascer
nessa
vida estranha
nós temos que aceitar
o desperdício de aposta que são os nossos
dias
e obter alguma satisfação no
prazer de
deixar isso tudo
para trás.

não chore por mim.

não sofra por mim.

leia
o que escrevi
depois
esqueça
tudo.

beba da fonte
que há em você
e comece
de novo.

poema: Charles Bukowski
tradução: Fernando Koproski
do livro MALDITO DEUS ARRANCANDO ESSES POEMAS DE MINHA CABEÇA (antologia poética de CHARLES BUKOWSKI) Editora 7Letras
http://www.livrariascuritiba.com.br/maldito-deus-arrancando-esses-poemas-de-minha-cabeca-aut-paranaense-lv386681/p

Esse site italiano postou o poema "lovers" do Leonard Cohen em diversas traduções (italiano, húngaro, espanhol). Junto a essas, está a minha tradução "Amantes", que faz parte do livro ATRÁS DAS LINHAS INIMIGAS DE MEU AMOR.  

Une grande base de données des chansons contre la guerre
ANTIWARSONGS.ORG
https://www.antiwarsongs.org/canzone.php?lang=fr&id=53779

ATRÁS DAS LINHAS INIMIGAS DE MEU AMOR
http://www.livrariascuritiba.com.br/atras-das-linhas-inimigas-de-meu-amor-aut-parana-lv220048/p
A MIL BEIJOS DE PROFUNDIDADE
http://www.livrariascuritiba.com.br/mil-beijos-de-profundidade-a-aut-paranaense-lv409219/p

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