quarta-feira, 6 de março de 2013


NÃO SOU KAFKA MAS FUI TROCADO POR UMA BARATA

Desde que nosso cachorro ficou doente há uns três meses, certas mudanças aconteceram em casa. Milo – pronuncia-se mailon, tal qual o cachorro do Máskara, pois é uma homenagem de sua dona a este personagem –, teve um câncer no fígado. Sim, um câncer que foi retirado em cirurgia e o motivo pelo qual nosso cão se mudou para dentro de casa, passando a dormir numa confortável caminha ao lado de nossa cama.
A princípio, esta simples relocação de dormitório da mascote não significaria uma maior mudança em casa. Acontece que dentro de casa, havia as nossas gatas... Não que houvesse qualquer tipo de desavença entre eles. Pelo contrário, desde pequena a Afrodite (a nossa gata primogênita) já havia estabelecido as regras da boa convivência no cenário doméstico. Após deixar um talho permanente na orelha esquerda de Milo, este nunca mais se meteu a besta com ela.
O problema foi o ciúme, sempre o ciúme, este corpo estranho que inexplicável e instintivamente se aloja dentro de nós e passar a crescer em silêncio até o momento em que se torna intolerável sob a pele e passa a dar o ar de sua des-graça! Enfim, foi o ciúme que surgiu e se entranhou em Afrodite.
Dia após dia, ela passou a se afastar de nossa convivência, começando a dormir apenas em sua caminha na garagem. Antes, ela sempre dormia conosco. A qualquer hora que fosse era certo, bastava um de nós chegar em casa cansado e se atirar na cama que lá vinha aquele periscópio peludo disfarçado de rabo de gato rodeando a nossa cama. Isso já fazia parte da rotina acolhedora do lar: era se deitar na cama e observar os movimentos retilíneos uniformemente variados daquele periscópio levantado e perpendicular ao piso se aproximando de nossa cama, circundando e ambicionando nosso leito.
Sim, Afrodite adorava dormir sobre meu peito. Logo que alcançava os lençóis, ela escalava minha camiseta e se aninhava sobre ele, iniciando uma sequência interminável de ronrons. Foi assim até que o Milo se estabelecesse no meio de seu caminho. Desde então, o ciúme se apossou de nossa gata e indelevelmente comprometeu o sagrado equilíbrio do ambiente doméstico.
Mas esta noite, tive uma insônia e entre as coisas que a gente faz quando fica meio zumbi insone entre um cômodo e outro da casa, encontrei Afrodite. E então a olhei. E então a peguei nos braços. E então a levei pra nossa cama. Sentiram o caráter reconciliatório da última frase? E acreditem, meus amigos, apesar de todo aquele ciúme acumulado nos últimos meses, Afrodite escalou meu peito, lentamente amaciou meu tórax com suas patinhas suaves e por fim se aninhou neste pequeno e humilde espaço em cima do coração de um homem.
Estávamos bem. Entre um ronron e outro, já estava quase convencendo Afrodite a refletir sobre a inutilidade e o exagero de seu ciúme nos últimos tempos quando eis que escuto: um gemido... Era a nossa outra gata, a Angelina anunciando através de miados estridentes que havia caçado algo, provavelmente um inseto, e que agora o trazia como troféu para casa. Na hora, Afrodite se levantou, olhou pra mim e logo depois pra Angelina e então pra Manuela, a nossa terceira gata.
Gostaria de dizer nesse momento que Afrodite se alongou em sua indecisão, que ela pesou os prós e contras, e que pelo menos por um instante considerou o profundo afeto que tinha por mim enquanto me olhava fixamente e sofria em silêncio por ter que se despedir assim tão prematuramente de meu peito... mas não, nada disso aconteceu.
Afrodite saltou da cama na hora e sem hesitação alguma, sem nenhum traço de provável futuro arrependimento, simplesmente assim, do nada, ela me deixou na cama: perplexo e sozinho com esta história que agora conto pra vocês.
Sim, meus amigos, finalmente chegou o dia em que me vi diante dessa triste constatação: não sou Kafka mas fui trocado por uma barata...

Fernando Koproski



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