quarta-feira, 25 de setembro de 2013


TUDO MENOS ESCREVER POESIA

tudo menos escrever poesia
como essa poesia que ganha prêmios literários
e ter que diluir uma espécie de escrita
falsa, morta, praticamente enterrada viva
em versos mortos, retos, milimétricos, sem energia,
sem verdade, sem vento, sem luz nas veias
e vias respiratórias, sem o gosto do agora ou suas alergias
e ter que escrever uma poesia indigna
que se filia a uma longa tradição
de seduzir os medíocres e encantar os mercenários
que concedem os prêmios literários

tudo menos ter que aceitar ou açoitar
os que mutilaram os braços da incompreensão
tudo menos ter que afogar
ou afagar os que asfixiaram girassóis,
os que amordaçaram a pureza do fogo no peito,
os que tentaram mastigar
ou desmerecer a velocidade da beleza
do fogo no beijo

tudo menos ter que respirar
com a cabeça e pensar com o pulmão
e sentir com o sangue
e compreender com o suor
e aprender e ensinar com as lágrimas
e não saber com o coração

tudo menos derreter icebergs
para ensinar ao urso-polar a solidão
tudo menos nunca ter que perdoar
aqueles que nunca pediram perdão

tudo menos ter que cantar
nesse buraco inconstante na página:
as paredes de papel,
os carros, ambulâncias e emergências de papel,
os desesperos, agonias e impaciências de papel,
as flores, telhados, manhãs e memórias de papel,
as intimidades, silêncios, pressas e olhares de papel,
as indiscrições, vaidades, prêmios e menções horrorosas de papel,
os outonos e lágrimas e suor e sangue de papel
de todas as pessoas de papel
que se esforçam para embalar
ou mesmo blindar
com plástico o seu peito
à espera de andar, dormir e acordar
confortavelmente
com corações de plástico
que nunca irão se decompor na paisagem

Fernando Koproski

poema publicado na antologia “Moradas de Orfeu” (Editora Letras Contemporâneas)

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