sábado, 4 de fevereiro de 2017

Lançamento de livros de Leonard Cohen reúne boa parte de sua produção poética
Reedição de duas obras traz seleção de versos aprovados pelo próprio músico

JORNAL O GLOBO
por Mariana Filgueiras
04/02/2017 4:30
RIO — No início de outubro de 2016, quando o músico Bob Dylan virou assunto no mundo inteiro por ter ganhado o prêmio Nobel de Literatura, sendo o primeiro compositor a receber o mais nobre galardão literário, foi Leonard Cohen quem escalou as melhores palavras para comentar o feito: “É como laurear o Everest por ser a montanha mais alta da Terra”.

Declaração que só podia vir de um Monte Fuji como ele. Tão imenso nas letras quanto nas canções, Cohen morreu um mês depois, em novembro, deixando além de toda trajetória musical, que é a parte de sua carreira mais conhecida, uma prateleira inteira de livros publicados — dois romances e 10 volumes de poesias, ou, como ele preferia contar, “uns vinte mil versos”.

Parte deste montante acaba de ser publicada no Brasil, em duas edições bilíngues com organização do também poeta e tradutor Fernando Koproski. Uma delas é a reedição de Atrás das linhas inimigas de meu amor, esgotada desde 2006, com poesias publicadas por Cohen entre 1956 e 1993, em seleção aprovada pelo próprio poeta.

E a segunda, A mil beijos de profundidade, com poemas escolhidos do último livro do autor, “A book of longing” (2006), que inclui ainda canções em tradução inédita — como “Thousand kisses deep”, música que batiza o livro.

— A minha ideia desde Atrás das linhas inimigas de meu amor, a primeira antologia que organizei e traduzi, era de apresentar um panorama da obra poética do Leonard Cohen, mostrando poemas representativos das diferentes fases e livros do autor. Há poemas sobre o amor, o tempo, o horror, o sagrado, o profano, a beleza, o desejo, as perdas. Como já havia trabalhado com os oito livros de poemas na primeira antologia, era certo que nessa nova coletânea daria um enfoque especial ao seu último livro, “Book of longing”. Inclui ainda algumas canções que sobrevivem como poemas mesmo sem a melodia — diz Fernando, em conversa com o GLOBO, sobre o mergulho na obra de Cohen, listando “So long, Marianne”, “Famous blue raincoat” e “I’m your man”, três dos seus clássicos.

SACANA E ERÓTICO

Se na primeira coletânea o organizador conseguiu que o próprio Cohen aprovasse sua seleção, não teve sorte com a segunda: por muito pouco A mil beijos de profundidade não ficou pronta antes da morte do músico, aos 82 anos, no dia 7 de novembro de 2016, depois de uma queda durante o sono, em Montreal.

— Foi uma pena. Ele gostava de acompanhar os seus poemas se recriando e habitando novos idiomas e culturas. Quando você lê a biografia da Sylvie Simmons, “I’m your man”, ou a biografia do Ira Nadel, “A life in art”, que também é muito boa, percebe como influenciou milhares de pessoas, de Kurt Cobain a Nick Cave. Ele começou a publicar literatura em 1956, começou a gravar discos no final de década de 1960 e manteve essas duas atividades por muitos anos, influenciando diferentes gerações de leitores em dezenas e mais dezenas de países. É impressionante como há histórias de pessoas que tiveram contato com sua generosidade, gentileza, intelectualidade ou espiritualidade cativante e criaram produtos a partir deste contato. Eu mesmo não saí ileso dessa experiência... — conta Fernando, que depois de traduzi-lo, escreveu o livro Retrato do artista quando primavera, publicado em 2014, inspirado em sua obra.

Quem lê os dois tomos na sequência percebe que Cohen vai ficando mais sacana e erótico com o tempo. Um humor sutil, contido nos poemas que abordam relacionamentos, como os que escreveu ao longo dos cinco anos em que viveu recluso no mosteiro budista de Mount Baldy, e que estão em “A mil beijos de profundidade”. Um deles é “A névoa da pornografia” (“quando você saiu da névoa da pornografia/ com seu papo de casamento e orgias/ eu era apenas um garoto de cinquenta e sete/ tentando fazer uma manobra rápida/ numa via lenta/ para mover meus lábios/ naquele lugar que não pega sol”). Outro bom exemplo é “O zen em colapso” (leia ao lado), como observa o organizador:

— São poemas que tratam da espiritualidade e ressaltam a condição humana de forma extrema, mostrando a humildade e a simplicidade da situação em que vivia na época, mas com um erotismo despudorado, bem-humorado. Há um Leonard Cohen inteiro a ser descoberto nesses poemas. Não vejo um outro artista que tenha desenvolvido uma lírica com essa grandeza ou uma trajetória similar nos campos da música e nos quadros de literatura inglesa dos últimos 60 anos.

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