Poeta, Tradutor e letrista * http://fernandokoproski.bandcamp.com/ * www.facebook.com/Fkoproski
terça-feira, 30 de julho de 2013
terça-feira, 23 de julho de 2013
Hoje nevou
em casa às 8 e meia da manhã, e então lembro o poema que escrevi para o
especial “O dia da neve” da Gazeta do Povo de alguns anos atrás:
A NEVE
uns me
perguntam
se a neve
virá,
outros
quando
a neve que
eu vi
eu sei que
virá
pois a
neve eu sei
que aqui
já está
às vezes
me falam
de
diferentes tipos de neve
para os
esquimós
elas são:
aput
neve no
chão,
gana
neve que
cai,
piqsirpoq
neve que
venta
e qimuqsuq
um monte
de neve
não as
conheço,
mas para
mim
as neves
também são
diferentes
e há
muitas neves
a neve de
sua pele
a neve
desta página
a neve dos
que
nunca
mostram o coração
a neve no
olhar depois
da queda
do primeiro amor
a neve de
tantas quedas
a neve
precisa dos gestos dela
a neve do
amigo
que se foi
tão cedo
a neve de
tantos cisnes
ignorados
aos gestos dela
pois não
poderia ser
senão neve
todo este
frio
e
suavidade
a neve das
canções de Cohen
a neve dos
mortos de Joyce
a neve das
canções
para não
morrer
a neve dos
que
não são
estas canções
mas mais
que a neve,
a certeza
da neve
a certeza
de que há colinas,
vales
e
montanhas
de páginas
em branco
me
esperando
pois na
certeza
imperecível
das
páginas nevadas,
a certeza
de que
nenhum destes longes
precisa do
que escrevo
a certeza
de que a neve
dessas
páginas
seja
incorrompível
aos versos
meus
não
importa
se dúvida
nas
canções,
colinas
e cisnes
dos gestos dela,
ainda
assim esta certeza:
a certeza
de que
nenhuma
dessas neves
precisa do
que escrevo,
apenas de
mim
FERNANDO KOPROSKI
segunda-feira, 22 de julho de 2013
BEIJO
um beijo seu
é apenas um beijo
beija apenas
o que seja beijo
o que apenas
um beijo deseje
um beijo seu
é apenas um beijo
beija apenas o que
em beijos se beije
um beijo seu beija
o que bem te vê
o que bem te ouve
o que te beethovens
um beijo assim
não devia ser
apenas beijo
devia ser escrito
de outra forma
ou ao menos
de outro jeito
mais comum
um beijo seu
devia ser escrito:
fly me to the moon
um beijo para Ingrid
do
Fernando
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Em busca de Curitiba | Fernando Koproski
Um poeta deve matar
a poesia não está no que os poetas dizem
a poesia não está no que os poetas falam em suas poéticas
a poesia não é o que eles pensam
que os poemas pensem
Não posso ficar parado que já começo a pensar. Depois de quarenta minutos de trânsito, finalmente desço do ônibus. Até que enfim o terminal do Guadalupe, esse mictório onde desemboca todo o intestino de Curitiba... Traficantes, prostitutas, assaltantes e alunos de letras, toda a marginália num raio de três quadras converge pra cá. E arrasta em seu curso as senhorinhas honestas, as diaristas, as moças de família, os porteiros, os representantes comerciais, os vigias noturnos, os estudantes de outros cursos e toda sorte de cidadão honesto que precisa pegar um ônibus se quiser uma hora voltar pra casa.
Depois de três quadras, começo a andar pelo calçadão. A reitoria está aqui do lado, mas antes de chegar lá preciso fazer uma coisa. Agora só faltam umas quinze ou vinte quadras pra te encontrar, Morte. E não estou armado, não ainda.
a poesia muito menos
é o que as musas sentem
a poesia muito mais
do que os poetas pressentem
após passar a noite,
o que mais meu verso invente
bebendo poemas como se fosse blues
quem disse que é poesia esse bafo de luz
que por onde passam, as musas mentem?
Não posso andar que já começo a pensar. Isso sempre acontecia comigo quando andava pela XV. Passava meia-hora andando de casa até a universidade e não via ninguém. Muitas vezes um conhecido dizia depois que havia me
cumprimentado, mas eu nem respondia. O pior é que era verdade, sempre fui distraído. Me distraía a cada momento que passava no calçadão. Às vezes porque estava simplesmente olhando uma cena, às vezes porque estava escrevendo de cabeça um poema, mas nem sempre eu pensava em poesia, nem sempre eu escrevia. Muitas vezes era só a poeira girando dentro da minha cabeça, provocando algum pensamento afogado na inércia daquele mar de neurônios condenados à neura da repetição... Como eu disse, muitas vezes era só a poeira girando dentro da minha cabeça, se levantando, pairando e depois lentamente se assentando novamente.
Mas se nessa hora em que as micropartículas de pó levitassem, de repente abrisse uma réstia de luz na minha cabeça, e uma lasca de sol entrasse sem ser convidada, eu já sabia: era poesia. Por um instante, eu podia até pensar que era uma epifania, tipo um acúmulo de nuvens douradas guardadas no fundo do crânio, mas no íntimo eu sabia que isso jamais existiria, ou se existisse, francamente não resistiria. Porque no fundo da cabeça era simplesmente poeira, dourada ou não, mas ainda poeira e talvez o início de uma poesia.
De qualquer forma, sempre que isso acontecia entrava num impasse: ou escrevia o que me vinha ou ignorava a magia. Mas você já fez isso algum dia, você já ignorou a poesia?
O dia em que ignorei a poesia: 21 de maio de 2009.
, ela estava comigo naquele dia. Seis da tarde. Ela tinha acabado de sair da aula de dança flamenca. Suas pernas brancas mal se continham dentro da meia-calça roxa. Os sapatinhos de boneca realçavam ainda mais a delicadeza dos pés. A sainha preta ficava agitada diante de minha presença e se rebelava ao vento, inaugurando belezas imprevistas na linha de cintura que a suavidade de seus gestos não compreendia, só intuía entre os seus passos de quase dança e os canteiros improvisados de pétalas de ipês amarelos caídas ao chão.
Mariana tinha 26, um pai alcoólatra, uma mãe doente, um irmão carente e uma série de tios e tias ausentes. Ela fazia música na faculdade de artes, queria ser pianista, tocava desde os quatro anos. A dança era mais uma transpiração do que uma ocupação. Era como a poesia pra mim: um suor da alma. Era algo tão natural e certo e irremediável que parecia não exigir dela nenhuma espécie de esforço para acontecer. Ela dançava não porque ambicionava isso, mas porque a dança era simplesmente sua moradia nas coisas que ela sabia e seu caminho para tudo que ela desconhecia. Sim, quando vinha na minha direção naquele fim de tarde, ela dançava pra mim belezas imprescindíveis de jasmim.
Mas a caminhonete importada avançou o sinal naquele instante. Poderia ter sido um minuto depois ou um minuto antes. Mas não. Tinha que ser naquela hora em que ela se virou pra sorrir pra mim, anunciando com os olhos verdes o seu abraço de jasmim. A caminhonete prensou seu corpo frágil violentamente contra o poste, esmagando pétalas de ipês, e roubando de mim para sempre aquele abraço delicado.
Eram seis da tarde quando meu mundo caiu. Sem boleros de Maysa, sem falsa poesia, sem chance de chegar à enfermaria.
Agora vocês já sabem porque estou aqui, porque peguei um ônibus em São José dos Pinhais quarenta minutos atrás, porque passei pelo Guadalupe mais uma vez, porque não fui direto pra reitoria, porque andei vinte quadras no calçadão da XV pra comprar aquela pistola na Cruz Machado. Por causa disso: um poeta deve morrer, mas antes um poeta deve matar. Sim, um poeta deve matar.
sonho com você dançando,
o sol em mais uma explosão solar,
os girassóis estourando com o calor,
a verdade absurda
de tuas coxas durinhas
dançando entre os canteiros dourados
improvisados pelas pétalas caídas dos ipês
sonho com você dançando, Mariana
e esse poema arrebentando a tarde
sem você perceber
Já não tem mais sol quando chego na universidade. A escadaria da reitoria está suja e escura como sempre. A cantina, sempre clara e branca, insuportavelmente branca como aquela sala branca, pálida e silenciosa no final do 2001 do Kubrick. Pure white nothingness, o puro e branco nada. Vejo ele no canto, já tinha saído da sua aula de francês. Ele, o cara que atropelou Mariana a 160 quilômetros por hora numa via urbana. Ele, o cara que matou o meu amor e que saiu ileso dos dois processos que abri contra ele. Ele era um cara muito sensível, fazia Letras francês na Federal, pintava quadros, fazia exposições e volta e meia se engajava em alguma causa igualitária em prol das minorias, tão sensíveis e oprimidas quanto ele.
Agora ele estava ali, esperando sentado pela morte. Quem sou eu pra desapontar o infeliz? Entre as mesas brancas, eu ando devagar e todo o barulho dos estudantes de repente se cala. Quando chego na frente dele, saco a pistola gelada em meu casaco e nem hesito: três, quatro, seis, sete, oito tiros no peito. E no final, um na cabeça. De saideira.
O último nem precisava, mas nunca fui de dispensar uma saideira.
Depois que apaguei o infeliz, demorou dez minutos pra aparecer um guardinha. Embora a guarita estivesse ao lado da cantina, ele não teve coragem de ver o que acontecia. Quando ele chegou na cena, eu já estava longe. Já estava longe daquela branquidão. Finalmente, consegui arrancar aquele silêncio de dentro da cabeça. Depois de duas quadras, andava pelas ruas e tudo estava tão calmo. Olhei minhas mãos e elas estavam douradas. Um líquido quente e dourado escorria entre meus dedos.
Entrei com pressa no terminal e fui direto pro banheiro. Lá deu pra ver melhor, e não era nada bom. O dourado vinha da minha nuca e descia rápido pelos ombros, pingando pelos cotovelos, escorrendo pelos braços e por fim se denunciando em minhas mãos.
A bala deve ter entrado bem na base do crânio, enquanto eu descia a escada da reitoria. Por isso eu já esperava, alguém covardemente me cuspindo uma morte pelas costas. Tanto a bala, quanto uma morte ou duas já eram esperadas. Só não esperava todo aquele dourado escorrendo da minha nuca. Aquilo, confesso, é o que me incomodava agora.
O tempo todo em que fiquei em tratamento psiquiátrico naquela clínica, onde me internaram depois da morte de Mariana, todos diziam que as nuvens douradas eram alucinação da minha cabeça, que eu só precisava ficar ali mais uma semana e tudo iria se resolver. Era só ter paciência e descansar mais uma semana e mais uma semana e mais uma semana.
Com certeza, os psiquiatras não acreditavam no dourado, apenas fingiam que ouviam quando eu falava sobre as nuvens douradas depositadas no fundo de meu crânio, pressionando a nuca e me dando aquela contínua dor de cabeça. Diziam que isso era um simples efeito colateral da fluoxetina, devido ao excesso de serotonina liberado em meu cérebro. Mas não era com eles que isso acontecia. Não eram eles que tinham aquela insuportável dor de cabeça todo dia às 4 da madrugada, me fazendo acordar e escrever. E então era só isso o que eu fazia: eu escrevia e escrevia e escrevia até que as nuvens douradas se aquietassem dentro da cabeça. Era o cúmulo eu um homem crescido com todos aqueles cúmulos-nimbos dourados varrendo poeira da cabeça e versos das minhas veias.
Mas agora a bala já estava fazendo efeito. A bala conseguiu realizar o que as drogas e as sessões de terapia falharam. Ela tirava aquele excesso de céu dourado da minha cabeça.
Olhei no espelho uma última vez e saí.
Agora estava tudo branco naquela noite escura. Mesmo sob as lâmpadas queimadas do terminal, tudo estava claro. A claridade me atingiu primeiro na perna, depois no braço esquerdo, duas vezes no pulmão. Respirar com tanta claridade estava ficando difícil. Pus a mão no casaco à procura de meus óculos escuros, mas eles deslizavam de minhas mãos. Estavam escorregadios e completamente ensopados de dourado.
Mesmo assim, ainda consegui pôr meus óculos. Mariana, você precisava estar aqui pra ver essa noite. Estou pingando pétalas de ipês pelos cotovelos. O dourado dos ipês me esquenta como teu beijo e o sangue do girassol. Ah, Mariana, essa noite pode até escurecer até eu te alcançar, mas depois as nuvens douradas vão fazer sol.
Fernando Koproski é escritor e poeta. Traduziu e organizou antologias poéticas de Charles Bukowski e de Leonard Cohen. É autor de Nunca seremos tão felizes como agora (7 Letras), entre outros livros.
Ilustrações: Felipe Rodrigues
Depois de três quadras, começo a andar pelo calçadão. A reitoria está aqui do lado, mas antes de chegar lá preciso fazer uma coisa. Agora só faltam umas quinze ou vinte quadras pra te encontrar, Morte. E não estou armado, não ainda.
a poesia muito menos
é o que as musas sentem
a poesia muito mais
do que os poetas pressentem
após passar a noite,
o que mais meu verso invente
bebendo poemas como se fosse blues
quem disse que é poesia esse bafo de luz
que por onde passam, as musas mentem?
Não posso andar que já começo a pensar. Isso sempre acontecia comigo quando andava pela XV. Passava meia-hora andando de casa até a universidade e não via ninguém. Muitas vezes um conhecido dizia depois que havia me
cumprimentado, mas eu nem respondia. O pior é que era verdade, sempre fui distraído. Me distraía a cada momento que passava no calçadão. Às vezes porque estava simplesmente olhando uma cena, às vezes porque estava escrevendo de cabeça um poema, mas nem sempre eu pensava em poesia, nem sempre eu escrevia. Muitas vezes era só a poeira girando dentro da minha cabeça, provocando algum pensamento afogado na inércia daquele mar de neurônios condenados à neura da repetição... Como eu disse, muitas vezes era só a poeira girando dentro da minha cabeça, se levantando, pairando e depois lentamente se assentando novamente.
Mas se nessa hora em que as micropartículas de pó levitassem, de repente abrisse uma réstia de luz na minha cabeça, e uma lasca de sol entrasse sem ser convidada, eu já sabia: era poesia. Por um instante, eu podia até pensar que era uma epifania, tipo um acúmulo de nuvens douradas guardadas no fundo do crânio, mas no íntimo eu sabia que isso jamais existiria, ou se existisse, francamente não resistiria. Porque no fundo da cabeça era simplesmente poeira, dourada ou não, mas ainda poeira e talvez o início de uma poesia.
De qualquer forma, sempre que isso acontecia entrava num impasse: ou escrevia o que me vinha ou ignorava a magia. Mas você já fez isso algum dia, você já ignorou a poesia?
O dia em que ignorei a poesia: 21 de maio de 2009.
, ela estava comigo naquele dia. Seis da tarde. Ela tinha acabado de sair da aula de dança flamenca. Suas pernas brancas mal se continham dentro da meia-calça roxa. Os sapatinhos de boneca realçavam ainda mais a delicadeza dos pés. A sainha preta ficava agitada diante de minha presença e se rebelava ao vento, inaugurando belezas imprevistas na linha de cintura que a suavidade de seus gestos não compreendia, só intuía entre os seus passos de quase dança e os canteiros improvisados de pétalas de ipês amarelos caídas ao chão.
Mariana tinha 26, um pai alcoólatra, uma mãe doente, um irmão carente e uma série de tios e tias ausentes. Ela fazia música na faculdade de artes, queria ser pianista, tocava desde os quatro anos. A dança era mais uma transpiração do que uma ocupação. Era como a poesia pra mim: um suor da alma. Era algo tão natural e certo e irremediável que parecia não exigir dela nenhuma espécie de esforço para acontecer. Ela dançava não porque ambicionava isso, mas porque a dança era simplesmente sua moradia nas coisas que ela sabia e seu caminho para tudo que ela desconhecia. Sim, quando vinha na minha direção naquele fim de tarde, ela dançava pra mim belezas imprescindíveis de jasmim.
Mas a caminhonete importada avançou o sinal naquele instante. Poderia ter sido um minuto depois ou um minuto antes. Mas não. Tinha que ser naquela hora em que ela se virou pra sorrir pra mim, anunciando com os olhos verdes o seu abraço de jasmim. A caminhonete prensou seu corpo frágil violentamente contra o poste, esmagando pétalas de ipês, e roubando de mim para sempre aquele abraço delicado.
Eram seis da tarde quando meu mundo caiu. Sem boleros de Maysa, sem falsa poesia, sem chance de chegar à enfermaria.
Agora vocês já sabem porque estou aqui, porque peguei um ônibus em São José dos Pinhais quarenta minutos atrás, porque passei pelo Guadalupe mais uma vez, porque não fui direto pra reitoria, porque andei vinte quadras no calçadão da XV pra comprar aquela pistola na Cruz Machado. Por causa disso: um poeta deve morrer, mas antes um poeta deve matar. Sim, um poeta deve matar.
sonho com você dançando,
o sol em mais uma explosão solar,
os girassóis estourando com o calor,
a verdade absurda
de tuas coxas durinhas
dançando entre os canteiros dourados
improvisados pelas pétalas caídas dos ipês
sonho com você dançando, Mariana
e esse poema arrebentando a tarde
sem você perceber
Já não tem mais sol quando chego na universidade. A escadaria da reitoria está suja e escura como sempre. A cantina, sempre clara e branca, insuportavelmente branca como aquela sala branca, pálida e silenciosa no final do 2001 do Kubrick. Pure white nothingness, o puro e branco nada. Vejo ele no canto, já tinha saído da sua aula de francês. Ele, o cara que atropelou Mariana a 160 quilômetros por hora numa via urbana. Ele, o cara que matou o meu amor e que saiu ileso dos dois processos que abri contra ele. Ele era um cara muito sensível, fazia Letras francês na Federal, pintava quadros, fazia exposições e volta e meia se engajava em alguma causa igualitária em prol das minorias, tão sensíveis e oprimidas quanto ele.
Agora ele estava ali, esperando sentado pela morte. Quem sou eu pra desapontar o infeliz? Entre as mesas brancas, eu ando devagar e todo o barulho dos estudantes de repente se cala. Quando chego na frente dele, saco a pistola gelada em meu casaco e nem hesito: três, quatro, seis, sete, oito tiros no peito. E no final, um na cabeça. De saideira.
O último nem precisava, mas nunca fui de dispensar uma saideira.
Depois que apaguei o infeliz, demorou dez minutos pra aparecer um guardinha. Embora a guarita estivesse ao lado da cantina, ele não teve coragem de ver o que acontecia. Quando ele chegou na cena, eu já estava longe. Já estava longe daquela branquidão. Finalmente, consegui arrancar aquele silêncio de dentro da cabeça. Depois de duas quadras, andava pelas ruas e tudo estava tão calmo. Olhei minhas mãos e elas estavam douradas. Um líquido quente e dourado escorria entre meus dedos.
Entrei com pressa no terminal e fui direto pro banheiro. Lá deu pra ver melhor, e não era nada bom. O dourado vinha da minha nuca e descia rápido pelos ombros, pingando pelos cotovelos, escorrendo pelos braços e por fim se denunciando em minhas mãos.
A bala deve ter entrado bem na base do crânio, enquanto eu descia a escada da reitoria. Por isso eu já esperava, alguém covardemente me cuspindo uma morte pelas costas. Tanto a bala, quanto uma morte ou duas já eram esperadas. Só não esperava todo aquele dourado escorrendo da minha nuca. Aquilo, confesso, é o que me incomodava agora.
O tempo todo em que fiquei em tratamento psiquiátrico naquela clínica, onde me internaram depois da morte de Mariana, todos diziam que as nuvens douradas eram alucinação da minha cabeça, que eu só precisava ficar ali mais uma semana e tudo iria se resolver. Era só ter paciência e descansar mais uma semana e mais uma semana e mais uma semana.
Com certeza, os psiquiatras não acreditavam no dourado, apenas fingiam que ouviam quando eu falava sobre as nuvens douradas depositadas no fundo de meu crânio, pressionando a nuca e me dando aquela contínua dor de cabeça. Diziam que isso era um simples efeito colateral da fluoxetina, devido ao excesso de serotonina liberado em meu cérebro. Mas não era com eles que isso acontecia. Não eram eles que tinham aquela insuportável dor de cabeça todo dia às 4 da madrugada, me fazendo acordar e escrever. E então era só isso o que eu fazia: eu escrevia e escrevia e escrevia até que as nuvens douradas se aquietassem dentro da cabeça. Era o cúmulo eu um homem crescido com todos aqueles cúmulos-nimbos dourados varrendo poeira da cabeça e versos das minhas veias.
Mas agora a bala já estava fazendo efeito. A bala conseguiu realizar o que as drogas e as sessões de terapia falharam. Ela tirava aquele excesso de céu dourado da minha cabeça.
Olhei no espelho uma última vez e saí.
Agora estava tudo branco naquela noite escura. Mesmo sob as lâmpadas queimadas do terminal, tudo estava claro. A claridade me atingiu primeiro na perna, depois no braço esquerdo, duas vezes no pulmão. Respirar com tanta claridade estava ficando difícil. Pus a mão no casaco à procura de meus óculos escuros, mas eles deslizavam de minhas mãos. Estavam escorregadios e completamente ensopados de dourado.
Mesmo assim, ainda consegui pôr meus óculos. Mariana, você precisava estar aqui pra ver essa noite. Estou pingando pétalas de ipês pelos cotovelos. O dourado dos ipês me esquenta como teu beijo e o sangue do girassol. Ah, Mariana, essa noite pode até escurecer até eu te alcançar, mas depois as nuvens douradas vão fazer sol.
Fernando Koproski é escritor e poeta. Traduziu e organizou antologias poéticas de Charles Bukowski e de Leonard Cohen. É autor de Nunca seremos tão felizes como agora (7 Letras), entre outros livros.
Ilustrações: Felipe Rodrigues
PUBLICADO NO CÂNDIDO #24, JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ, JULHO DE 2013
terça-feira, 2 de julho de 2013
rod
hoje faz 4 anos que meu amigo Rodrigo partiu. esse é o poema que fiz pra ele na época:
POEMA PARA RODRIGO DE SOUZA LEÃO
meu amigo se foi
e levou consigo
mais que um amigo
ele levou a ousadia de fotografar
o silêncio suave e selvagem dos aquários
a coragem de mergulhar fundo
em suas imagens de delírio exato
meu amigo só não foi sensato
ao voltar pra superfície das páginas
a fim de nos fazer respirar
poemas verdadeiros
e toda aquela loucura lúcida de seu romance
meu amigo foi insensato
ao ser generoso
e compartilhar conosco
suas mais puras
e belas anêmonas de sangue
ele foi digno,
ousado, corajoso, verdadeiro e generoso
e como se isso tudo não fosse o bastante
ele também foi um grande poeta
que agora deixou:
toda a poesia brasileira estanque
seis perfurações azuis em meu peito
os livros livres para queimar
fora das estantes
em seus últimos poemas
meu amigo já dava pistas de seu mais novo plano
– fotografar cada um dos aquários
do fundo do oceano –
tanto que no dia 2 de julho de 2009
rodrigo tirou o escafandro do armário
e partiu
para outras águas
para definir essa dor, meu amigo,
tudo que eu não preciso são palavras
Fernando Koproski
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